Sustentabilidade em projetos de infraestrutura ferroviária
Há um crescente consenso global que investimentos em infraestrutura podem ajudar os países a equacionar dois dos seus principais desafios modernos: a dinamização da economia e a mitigação da crise climática. No Brasil, o desenvolvimento de uma agenda de infraestrutura sustentável é particularmente relevante em um cenário pós-covid, de modo a garantir que a recuperação da economia ocorra de forma ambientalmente sustentável. Construir padrões sólidos para definir o que é infraestrutura sustentável é fundamental para que essa agenda se estabeleça de forma consistente.
Nesse contexto, a certificação ambiental de projetos de infraestrutura é uma ótima oportunidade para o Brasil se colocar na vanguarda do desenvolvimento de infraestrutura sustentável no mundo. Isso permitiria que o país se beneficiasse dos recursos que vêm sendo mobilizados para financiar esta agenda. Por isso, trata-se de uma boa notícia o início do processo de certificação ambiental de três projetos de concessão das ferrovias, a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste) e a Ferrogrão (EF-170). A certificação ambiental desses projetos e de outros permite que seus empreendedores utilizem títulos verdes para os financiarem, aumentando a oferta de capital no setor, reduzindo o custo de financiamento dos projetos e assegurando a qualidade dos mesmos.
No entanto, para que essa iniciativa do Ministério da Infraestrutura tenha sucesso é preciso que os diversos atores envolvidos atentem para questões fundamentais que surgem com a certificação ambiental. Caso contrário, é possível que a emissão de “títulos verdes” seja usada para projetos que não resultem em menores impactos em termos de emissões de gases de efeito estufa, ou mesmo projetos que sejam ambientalmente nocivos.
Isso porque o chamado mercado de títulos verdes usa critérios variados, estabelecidos por diferentes instituições. Entre as principais, estão os Green Bond Principles, Social Bond Principles, Sustainability Bonds Guidelines, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e os Padrões de Desempenho da International Finance Corporation, Climate Bonds Standard. Com exceção do Climate Bonds Standard, esses padrões não estabelecem critérios de certificação, mas sim diretrizes utilizadas por revisores externos, normalmente empresas especializadas nesse tipo de avaliação, que emitem um relatório de opinião ou verificação sobre o enquadramento de uma emissão ao padrão escolhido, e classificando a emissão como título verde ou outro título temático, por exemplo.
Como essas diretrizes não são uniformes, existe enorme liberdade para os revisores de títulos temáticos classificarem determinado projeto como “verde”, “sustentável”, entre outras nomenclaturas utilizadas pelo mercado. Isso torna fundamental que os critérios utilizados sejam discutidos com transparência.
Apesar de todos as diretrizes existentes terem como um dos seus elementos a transparência das operações, o programa de ferrovias do Ministério de Infraestrutura foi considerado elegível para receber financiamento via a emissão de títulos verdes sem que fossem explicitados os critérios, métricas ou indicadores de desempenho que comprovem a sua sustentabilidade. Também não houve divulgação de como esses critérios foram utilizados na verificação de elegibilidade dos projetos. A falta de transparência reduz a clareza tanto para investidores quanto para a sociedade civil sobre a qualidade dos projetos e tem potencial para gerar judicialização, afugentar investidores e aumentar custos.
É curioso notar que essa falta de transparência sobre os critérios de elegibilidade dos projetos de ferrovias do governo federal reproduz a falta de transparência encontrada no setor de infraestrutura de transportes como um todo. Análise dos pesquisadores do Climate Policy Initiative/PUC-Rio sobre projetos federais de concessão de infraestrutura de transporte terrestre na Amazônia mostra que 57% dos documentos e informações sobre esses projetos não puderam ser encontrados.
Além da falta de transparência, há um segundo desafio de elegibilidade que diz respeito aos impactos indiretos dos projetos de infraestrutura. Ainda que a substituição da malha rodoviária por ferroviária reduza a emissão de gases de efeito estufa e que o programa federal de ferrovias tenha projetos elegíveis à captação de recursos via a emissão de um título verde, é possível que o projeto aumente emissões líquidas.
Isso ocorre porque os parâmetros do Climate Bonds Standard tipicamente ignoram efeitos indiretos de projetos de infraestrutura como, por exemplo, os impactos sobre a paisagem e emissões resultantes do deslocamento de grande número de trabalhadores para as regiões onde as obras serão implementadas ou mesmo pela mudança da dinâmica econômica do uso da terra decorrente da queda nos custos de transporte que as ferrovias gerarão. Esses impactos indiretos podem ser extremamente relevantes.
Análises do Climate Policy Initiative/PUC-Rio sugerem que a construção da Ferrogrão (EF-170) influenciará a dinâmica econômica de mais de 30 municípios no norte do estado do Mato Grosso. Na ausência de medidas de mitigação, isso gerará mais de 2.000 km2 de desmatamento e resultará na emissão de 60 milhões de toneladas de carbono equivalente (50 vezes mais que os ganhos da substituição do modal rodoviário pelo ferroviário).
Esses desafios reforçam a necessidade de transparência de critérios e métricas sendo utilizados na certificação bem como o imperativo de enfrentar a questão dos impactos indiretos de projetos de infraestrutura. Enfrentá-los no presente esforço de certificação ambiental das ferrovias Fiol, Fico e Ferrogrão é particularmente relevante em um cenário pós-covid, de modo a garantir que a recuperação da economia ocorra de forma ambientalmente sustentável. Construir padrões sólidos para definir o que é infraestrutura sustentável é fundamental para que essa agenda se estabeleça de forma consistente. Fonte: Valor Econômico